E agora? O que acontecerá com o Senado, se a votação de amanhã absolver o presidente Renan Calheiros, em sessão secreta, voto secreto, contra a decisão do Conselho de Ética, que pede sua cassação, contra todas a evidências de delitos comprovadas?
O Senado brasileiro nasceu com raízes na tradição greco-romana, inspirado na Câmara dos Lordes da Grã-Bretanha e influenciado pela doutrina francesa da divisão e harmonia dos poderes do Estado e dos direitos dos cidadão. Aqui, foi criado pela Constituição de 1824. Quarta-feira, haverá uma mudança histrica neste país. Para o bem ou para o mal. Para frente ou para trás. Podemos acordar em 1823. Podemos olhar pela janela e ver meirinhos e mucamas, sinhás-moças em berlindas e carruagens com negrinhos de libré e cabeleira empoada no estribo. Ou então, se Deus ajudar, podemos progredir, se os senadores imitarem a súbita grandeza que o STF nos ofertou, liderada por um brilhante bisneto de escravos. Mas, e se Renan for absolvido? Significa que nada de real aconteceu? Que estávamos todos loucos há três meses? Foi tudo um sonho?
Aliás, não se trata mais de punir Renan. Isso é um furta-cor acusatório, será o matiz hipócrita de uma missão traída. Tudo parecerá falso, as sessões vão virar um teatro burlesco, um circo de sacanagens assumidas. O Senado vai virar uma novela sem-fim a que assistiremos para sempre, com cenas inesquecíveis, como o recente choro do mamulengo Roriz, como o trêmulo vexame das oposições com medo de chantagens e com as acusações mútuas de 'bonecas'. Haverá silêncios constrangidos entre os oradores. Cada vez que se pronunciar 'Vossa Excelência', um travo de amargor pontuará as sílabas, haverá o perigo de gargalhadas nas galerias, crises de engasgos de vergonha. Nas consciências perpassarão rostos de homens honrados, de nobres fantasmas como Afonso Arinos, Santiago Dantas, Milton Campos... O secular cinismo vai continuar, claro, mas a consciência do vexame vai se instilar nos cafezinhos, nos mictórios, algo mugirá nos cantos, como um bicho lamentoso. Os senadores não terão mais coragem de desafiar : 'Você sabe com quem está falando?', pois a resposta poderá ser devastadora.
Estranhamente, creio que a eventual absolvição de Renan vai gerar um ódio mudo contra ele, principalmente entre os que o salvaram. Seu sorriso vitorioso, seus dedos em 'V' serão insuportáveis a seus aliados invejosos, pois sabem-nos não merecidos. Mesmo seus ajudantes-de-ordem, como Almeida Lima ou o suplente Rapunzel , Wellington Salgado, rosnarão pelos cantos contra a ingratidão do chefe, livre, indo comemorar no Piantella.
Mesmo em nós, a platéia vetada para a sessão, haverá uma mudança 'existencial'. Ficaremos menos democráticos, vamos sonhar com tanques de guerra e déspotas esclarecidos. Alguns filhos talvez passem a encarar os pais com desconfiança, talvez algumas amantes forjem orgasmos decepcionados. Aos poucos, um lampejo de arrogância vai se instalar nos olhos dos seguranças, dos contínuos, dos servidores de cafezinho; aos poucos, com crescente desrespeito, chegarão a dar tapinhas de intimidade folgada nas costas dos parlamentares humilhados. No almoxarifado, faxineiros roubarão latas de detergentes, vassouras, desentupidores de privada, as moças da limpeza deixarão os banheiros sujos e, quem sabe, uma grande inundação de fezes vai emporcalhar os tapetes azuis, que apodrecerão aos poucos, os lustres cairão como jacas moles e o teto vai murchar como um bolo solado. Nos subterrâneos e esgotos, uma assembléia de ratos e lacraias fará a mímica das sessões plenárias.
Por outro lado, haverá milagres pelos grotões de Alagoas. Como a verdade virou mentira e a mentira virou verdade, os açougues fantasmas e falidos em remotos desertos se encherão de carne das boiadas de Renan, carcaças se inflarão, as bocas desdentadas dos analfabetos-laranja se encherão de dentes, o município de Muricy se transformará numa festa permanente de cerveja Schincariol, um 'oktoberfest' da caatinga, os cheques fajutos vão revoar como andorinhas sobre Brasília, as fazendas imaginárias se encherão de boiadas, as churrasqueiras vão enfumaçar os campos em hecatombes homéricas, e o sertão vai virar mar e multidões do cabresto do Bolsa-Família virão adorar novos padrinhos Cíceros e Lula se abraçará com Renan, finalmente em paz com o PMDB. E o mentor de tudo, o dono do Maranhão, aparecerá no fim, de bigode aparado e jaquetão impecável, como sempre, intocado pela História. E o dia vai raiar depois da grande festa, mas com a 'aurora de dedos róseos', os indícios da boa e velha inflação já estarão aparecendo no horizonte lulista.
Batido pelo vento da manhã, um dragão da independência contempla a bandeira brasileira no alto do mastro. O vento é forte, mas a bandeira não se move, apodrecendo na praça, nosso lindo pendão da desesperança.
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